Mamãe não foi embora, ela está em mim


O canto do sofá está vazio e a almofada que ela segurava, enquanto assistia a novela e conversava com os personagens parece esperar por ela.
Quando o ?mocinho? do filme entra na casa vazia em busca de provas, e o ?bandido? se aproxima da casa, eu podia ouvir o coração disparado da minha mãe;
- Ai meu Deus, socorro ele vai chegar. Sai logo daí seu tonto, o assassino está chegando.
E parecia que o mocinho ouvia e logo saia correndo.
- Graças a Deus! ? suspirava aliviada a minha velhinha.
- Mirinha estou com vontade de comer alguma coisinha, você não?
- Janta?
- Não, uma coisinha para comer enquanto assisto o filme. Aproveita que você vai levantar e aumenta um pouquinho filha, eu acho que estou ficando meio surda.
E eu pegava amendoim, salaminho, biscoito de polvilho e algum suco.
- Obaaa!!!!! Delícia das delícias! Vou comer sem dó.
Tudo era motivo para agradecer e celebrar.
Mamãe era uma mulher de riso fácil, especialista na arte de fazer amigos, bater papinho, aconselhar, contar histórias... e repetir seu conselho predileto:
- Se cair levanta, eu não criei filha para ficar no chão reclamando da vida. É fácil ter fé quando tudo está bem, quero ver manter a fé e a coragem quando tudo está desmoronando...
E eu não sabia, mas um dia me agarraria a esse conselho, com todas as minhas forças.
Quantas lições de superação, teimosia, coragem, alegria, fé... essa mulher da minha vida me ensinou.
De repente a roda da vida girou e eu assumi o lugar dela e ela o meu. Trocamos os papéis, mas, eu tinha uma vantagem, ela já havia me ensinado a ser mãe e eu pude colocar em prática, todas as lições que aquela mãezinha inexperiente e assustada me ensinou.
Imagino o medo que tomou conta da minha velhinha, quando me segurou nos braços pela primeira vez e não sabia o que fazer com aquele ser humano, que tomaria todo o espaço e tempo da vida dela.
Eu senti esse mesmo medo, quando segurei minha mãe nos braços e percebi que ela não andaria mais e a partir daquele momento, ela tomaria todo o espaço e tempo da minha vida.
Mamãe me ensinou a testar a temperatura da mamadeira no dorso da mão, então ficou fácil para eu testar a temperatura da sopa e do café com leite, para não queimar a boca da minha velhinha.
Ela desenvolveu uma técnica de segurar a colher com uma mão e a minha mão com a outra, para que eu comesse a papinha sem derrubar tudo. Essa mesma técnica eu usei para dar sopa de pão de milho com leite, nos dias em que ela não queria comer nada e empurrava a tigela.
Eu não me lembro na minha infância de passar uma semana sem um machucado, um joelho ralado, pé torcido, braço cortado... e mamãe conversava comigo enquanto fazia o curativo, falava sem parar para me distrair, dava um beijinho e depois dizia ? ?Pronto agora vai sarar.?
E sarava!
Essa mesma estratégia eu usava para fazer curativo no braço, que estava com câncer de pele. Enquanto limpava e trocava o curativo contava todas as histórias que ela me contara centenas de vezes e depois dava beijinho e dizia ? ?Pronto agora vai sarar.?
Mas, não sarou!
Quando comecei a aprender a ler ficava o dia inteiro atrás dela, para que me ensinasse a juntar as letras, seguia minha velhinha por toda a casa e ela me ensinava enquanto fazia o almoço, lavava a roupa no tanque, passava pano na cozinha...
Então um dia mamãe pegou uma revista e começou a olhar com estranheza.
- Mirinha o que está escrito aqui?
E eu juntei as letras e comecei a ler para minha mãe.
E assim eu me tornei mãe da minha mãe, e pude exercitar todas as lições que ela me deu, como trocar fraldas, dar banho, dar comida na boca sem deixar cair na blusa, pentear o cabelo e dizer ? ?Pronto, agora está bonita.?
Até o dia em que ela parou de rir, não bateu mais papinho, a alegria e a fé foram saindo aos poucos do nosso mundo, e só o silêncio feito de gritos e choro sufocados tomou conta de nós duas.
Ela se foi e ficou um vazio enorme no meu mundo.
Mas todos os dias eu repito ? ?Se cair levanta, eu não criei filha para ficar no chão reclamando da vida. É fácil ter fé quando tudo está bem, quero ver manter a fé e a coragem quando tudo está desmoronando...
Tudo desmoronou minha velha, e eu passeei pelos escombros e recolhi os meus melhores pedaços e, em todos eles reconheci a sua digital.
Agora eu sento no mesmo canto do sofá, seguro a almofada enquanto assisto meus filmes. E quando o ?mocinho? do filme entra na casa vazia em busca de provas, e o ?bandido? se aproxima da casa, eu posso ouvir o meu coração disparado;
- Ai meu Deus, socorro ele vai chegar. Sai logo daí seu tonto, o assassino está chegando.
E o mocinho me ouve e logo sai correndo.
Mamãe não foi embora, ela está em mim.
Obrigada minha velha, por me dar o privilégio de ser sua filha e sua mãe.?
Míriam Morata

