2021: o ano em que o STF decidiu sobre a tributação do software
Por: Maria Ângela Lopes Paulino Padilha[1]
Até 2020 havia apenas dois pronunciamentos antigos do STF acerca do tratamento tributário do software: a decisão proferida em 1998 no RE 176.626, que examinou a incidência do ICMS nas licenças de uso com software veiculados em disquetes vendidos nas lojas físicas, e o julgamento em 2010 da ADI/MC 1945, que versou sobre a cobrança do ICMS pela Lei do Mato Grosso nº 7.098/98 nas operações com software via download.
No RE foi adotada a famosa distinção entre software de prateleira e software por encomenda, que embasou toda a orientação jurisprudencial que se seguiu no âmbito do Judiciário, inclusive decisões do próprio Fisco, no sentido de que operações com softwares padronizados, produzidos em série para ser comercializados no varejo a uma pluralidade de consumidores, estariam sujeitas ao ICMS, enquanto que programas de computador personalizados, desenvolvidos para atender às necessidades específicas de determinado usuário, atrairiam o ISS.
A histórica compreensão do RE 176.626 e como esse precedente foi aplicado nesses últimos 20 anos é um desacerto. Primeiro, porque a referida classificação de programas de computador não serviu para demarcar o campo de incidência daqueles impostos. Segundo, porque o Ministro Relator Sepúlveda Pertence, firme na ideia de que o conceito de mercadoria não abrange bens incorpóreos, diferenciou duas relações jurídicas quando softwares de prateleira são licenciados: um contrato de aquisição do corpo mecânico que veicula o software e um contrato de licença de uso que tem como objeto o direito autoral de usar o programa. Na venda do disquete, incidiria o ICMS, na licença de uso, não.
Em momento posterior, na apreciação da medida cautelar da ADI 1945, o STF sinalizou pela evolução do conceito de mercadoria e admitiu a incidência do ICMS sobre "softwares adquiridos por meio de transferência eletrônica de dados". Assinalou a Corte Suprema que o "Tribunal não pode se furtar a abarcar as situações novas, consequências concretas do mundo real, com base em premissas jurídicas que não são mais totalmente corretas" e que, seja por meio de disquete ou download, adquire-se "o que se contém dentro do disquete ou aquilo que é transmitido via sistema de Internet".
Naquela oportunidade, parte dos Ministros, que optaram por manter a lei mato-grossense em vigor, indeferiram a cautelar por entenderem que não havia mais urgência e perigo da demora, pois a norma já produzia efeitos há 11 anos. Ministros como Marco Aurelio, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski ponderaram a necessidade de se debater o mérito e de uma lei complementar para dirimir conflito entre Estados e Municípios, até porque tanto o RE 176.626 como a ADI/MC 1945 foram apreciados antes do advento da LC nº 116/03. Além de terem partido de um contexto normativo bastante distinto do atual, esses julgados estavam inseridos num cenário econômico igualmente diverso, quando sequer existia a computação em nuvem.
Com o crescimento das transações com software através da Internet, o conflito entre ISS e ICMS foi ganhando cada vez mais força.
De um lado, temos os Municípios respaldados na LC nº 116/2003, que prevê o licenciamento de direito de uso de software como serviço tributável pelo ISS e, também, em pronunciamentos mais recentes do STF[2], que têm validado a cobrança do imposto municipal sobre atividades que escapam do conceito civilista de serviço.
Do outro, os Estados defendem que a tributação do consumo na forma bipartida, baseada na dicotomia dar e fazer e o conceito clássico de "mercadoria", atrelado a um bem corpóreo, figuram como critérios problemáticos para classificar os negócios da economia digital e, diante da necessidade de ajustar a materialidade tributária a novas formas de exploração econômica, "mercadoria" haveria de ser compreendida como todo bem inserido no contexto de produção, circulação e consumo. A edição dos Convênios ICMS 181/2015 e 106/2017 acirraram a disputa protagonizada por esses entes políticos, contribuindo para a insegurança jurídica das empresas atuantes no setor.
Após décadas de incertezas, a boa notícia é que hoje o contribuinte tem mais previsibilidade para planejar suas ações e negócios com software, já que o STF finalmente concluiu, no início deste ano, o julgamento da ADI 1945 junto com o julgamento da ADI 5659, ajuizada em 2017 contra a pretensão do Estado de Minas Gerais em exigir o ICMS sobre as licenças de uso de software.
O STF, liderado pelo voto do Ministro Dias Toffoli, afastou o ICMS nas operações de licenças de uso de software, cabendo aqui destacar o raciocínio e principais fundamentos deste voto condutor para concluir em favor do ISS.
De início, registrou o Ministro que a classificação entre software de prateleira e por encomenda não seria suficiente para demarcar a competência tributária, pois alicerçada exclusivamente na dualidade "obrigações de dar e fazer" a qual estava sendo superada pela Corte em diversos precedentes.
Toffoli vale-se do direito comparado e cita diretrizes e princípios adotados pela União Europeia e OCDE para o comercio eletrônico, tais como: (i) não criar impostos novos e adaptar os existentes; (ii) princípio da flexibilidade, segundo o qual sistemas tributários devem ser dinâmicos, não podendo ficar alheios às novas realidades tecnológicas; (iii) garantir neutralidade de modo que o tratamento tributário seja o mesmo para o comércio eletrônico e o convencional - deve-se evitar a bitributação pelo ISS e pelo ICMS, mas também não podem as operações com software ficar de fora do alcance de qualquer tributação; e (iv) considerar transmissão eletrônica como serviços, a exemplo do IVA europeu e Sales for Tax Norte americano.
Inspirado nessas diretivas da experiência internacional, o STF aceita a interpretação evolutiva do texto constitucional, deixa de lado a alternativa posta no art. 153 da CF, que autorizaria a União exercer sua competência residual para tributar essas novas tecnologias, e vai se utilizar de um imposto já existente, que será o ISS.
Ao voltar-se para o ordenamento jurídico brasileiro, Toffoli adota o critério objetivo da lei complementar ancorado no que prescrevem os arts. 146, I, 156, III, e 155, §2º, IX, b, da CF. Segundo essa sistemática objetiva, cada vez mais empregada pelo STF para solucionar conflitos entre Estados e Municípios, o ISS irá incidir sobre atividades que representem tanto obrigações de fazer quanto também operações mistas, que dizem respeito a contratos complexos, em que presentes relações de dar e fazer de forma indissociável sob a perspectiva jurídica e financeira. Na hipótese de contratos complexos, conferindo crescente prestígio ao disposto no art. 155 citado, conclui o STF que incide o ISS sempre que o serviço está definido na lei complementar como tributável por tal imposto.
Ao examinar a natureza jurídica do licenciamento de uso do software, Toffoli considera legítima a escolha da LC nº 116/03 quando incluiu no item 1.05 essa atividade na lista anexa. Para o Ministro, a licença de uso é uma operação mista/complexa, com prevalência de prestação de serviço: o dar estaria presente no momento da transmissão do programa de computador permitindo o seu acesso pelo usuário, mas o fazer, o engenho humano, seria a característica fundamental do software, pois faz-se imprescindível a existência de um esforço intelectual direcionado para o desenvolvimento de qualquer programa de computador, mesmo que padronizado. Além desse esforço intelectual, o fazer humano revela-se nos demais serviços e funcionalidades ofertadas ao usuário, como "o help desk, a disponibilização de manuais, atualizações tecnológicas e outras funcionalidades previstas no contrato de licenciamento ou de cessão de uso".
Atento ao modelo de negócio de licenciamento de softwares suportados na computação em nuvem, Toffoli pontua que se mostra ainda mais evidente esse esforço intelectual nas operações de SaaS (Software as a Service), por prover soluções tecnológicas de forma contínua e exigir gestão e manutenção constante de aplicativos e máquinas por profissionais com conhecimento especializado sobre computação.
Um último aspecto de extrema importância há de ser destacado deste julgamento: embora a maioria dos Ministros admita a incidência do ICMS sobre bens incorpóreos, ficou consignado que o fato gerador deste imposto estadual pressupõe transferência de titularidade do bem, o que não ocorre nos licenciamentos de uso de software. Tal entendimento repercute não só na compreensão do tratamento tributário de contratos com software, mas também constitui relevante paradigma para a tributação de outros negócios jurídicos da economia digital.
O STF então, alicerçado em todos os fundamentos acima delineados, declara inconstitucional a Lei do Mato Grosso nº 7.098/98 na parte em que exige o ICMS sobre transações eletrônicas com software (ADI 1945) e atribui à legislação do Estado de Minas Gerais, bem como ao art. 2º da LC nº 87/96, interpretação conforme à Constituição Federal, excluindo das hipóteses de incidência do ICMS o licenciamento de uso de programas de computador (ADI 5659).
A partir da definição pelo Plenário nessas ADI, a Corte Suprema julga a ADI 5576, ajuizada contra a legislação do Estado de São Paulo, também impedindo o Fisco paulista de cobrar o ICMS sobre as licenças de uso de software.
Na ADI 5958, por meio da qual se combatia o Convênio CONFAZ 106/2017 que tentou validar a cobrança do ICMS sobre novas tecnologias de forma mais ampla, referindo-se a qualquer operação com bens digitais, a Ministra Cármen Lúcia declarou a ação prejudicada com o julgamento da ADI 5659. Segundo a Ministra, houve a perda superveniente do seu objeto, uma vez que o pedido na ADI 5958 consistia em impugnar o art. 2º da LC nº 87/96 para "afastar qualquer possível interpretação que permita a incidência do ICMS sobre operações de transferência eletrônica de softwares e congêneres".
Ainda de acordo com Cármen Lúcia, o Convênio 106/17 teria perdido sua eficácia desde o julgamento da ADI 5659, por se tratar de ato regulamentador do art. 2º da LC nº 87/1996, editado com base em interpretação tida como inconstitucional pelo STF. Ao assim decidir, a Ministra corrobora com a possibilidade de prevalecer a tese de que os Estados não seriam competentes para tributar transações com bens digitais.
Por último, neste mês de dezembro, o STF concluiu o julgamento do Tema 590 no RE 688223, relativo à incidência de ISS sobre contratos de licenciamento de programas de computador desenvolvidos para clientes de forma personalizada. No mesmo rumo do decidido nas ADI 1945 e 5659, os Ministros destacaram que, independentemente do tipo de software, se produzido à medida do cliente ou para o consumo, nas licenças de uso de software há obrigação de fazer, devendo incidir o imposto municipal[3].
Sem sombra de dúvida, todos esses pronunciamentos do STF deixam marcas sólidas e seguras para a tributação do software: superam a taxionomia software de prateleira e software por encomenda; conquanto admitam mercadoria como bem intangível, reforçam a transferência de propriedade do bem como condição para incidência do ICMS; e concluem que o licenciamento de uso de software, sob qualquer modalidade - padronizado ou personalizado -, configura prestação de serviço passível de tributação pelo ISS.
[1] Doutora e Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP. Professora do IBET. Autora dos livros "As Sanções no Direito Tributário" e "Tributação de Software". Advogada no escritório Barros Carvalho Advogados Associados
[2] Leasing financeiro, RE 547.245 e RE 651.703 e Planos de Saúde, RE n. 651.703.
[3] Tese de repercussão geral fixada pelo STF: ?É constitucional a incidência do ISSQN no licenciamento ou na cessão de direito de uso de programas de computação desenvolvidos para clientes de forma personalizada, nos termos do subitem 1.05 da lista anexa à LC nº 116/2003?
Publicado originalmente em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/2021-o-ano-em-que-o-stf-decidiu-sobre-a-tributacao-do-software-27122021